O estudo do Estado democrático latinoamericano: Uma perspectiva relacional*
Profesor en la Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Rio Grande do Sul , Brasil , Profesor en la Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil , Profesor en la Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Resumo
O presente trabalho parte do argumento de que a abordagem relacional do Estado, integrada por elaborações de autores como Nicos Poulantzas e Bob Jessop, em diálogo com outras contribuições genuinamente latino-americanas, pode contribuir para a compreensão da realidade política latino-americana, particularmente a do Estado democrático-burguês, em sua especificidade. Assim, através de uma pesquisa e análise bibliográficas, busca-se discutir o potencial analítico da abordagem proposta para o debate e a compreensão da noção de Estado na América Latina. Dentre as conclusões, afirma-se que o referido potencial é verificado no fato de o arcabouço teórico proposto permitir uma interpretação a partir das especificidades de cada formação social concreta, assim como uma compreensão das razões pelas quais certos interesses de classe são priorizados em detrimento de outros no sistema estatal.
Received: 2019 April 6; Accepted: 2019 May 7
Keywords: Palavras-chave Estado, Democracia, Relações Sociais, América Latina.
Keywords: Keywords State, Democracy, Social Relations, Latin America.
SUMARIO
1. Introdução / 2. O estudo do Estado sob uma perspectiva relacional e sua relação com a democracia burguesa / 3. A condensação das relações de classe em uma formação social abigarrada / 4. O princípio da igualdade e a heterogeneidade do alcance estatal / 5. A dominação por meio da seletividade estratégica do Estado: possibilidade de interpretação / 6. Considerações finais / 7. Referências
1. INTRODUçãO
O contexto histórico do Estado democrático latino-americano é marcado por desigualdades socais, instabilidade institucional e de frequentes e intensas reformulações do bloco no poder no aparelho estatal. Além disso, as condições de sobreposição de cosmovisões suscitam a discussão de heterogeneidades na formação social e da necessidade de considerar diferentes modos de produção não dominantes que agem sobre aquelas sociedades.
O estudo desse Estado, portanto, requer que estas questões sejam levadas em conta e indica a necessidade de um processo de análise que considere aspectos, tanto em um nível abstrato, quanto no nível empírico. A intenção neste trabalho é dar ênfase à dimensão do pensamento sobre o conceito de Estado, ou seja, sobre o estudo do Estado como categoria central de análise.
O objetivo geral é, assim, discutir a noção de Estado democrático na América Latina a partir de uma abordagem relacional a fim de contribuir para a compreensão e explicação do seu conceito. Baseados em uma pesquisa e análise bibliográfica, busca-se apontar elementos na abordagem relacional que contribuam para a análise das especificidades do Estado e da democracia nas formações sociais latino-americanas.
Em relação à estrutura do trabalho, dividimos o texto em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Inicialmente, versaremos sobre a abordagem relacional do conceito de Estado em contraposição a outras visões teóricas, principalmente do institucionalismo liberal, que prevalecem na teoria política. Em segundo e terceiro lugar, refletiremos sobre a referida abordagem para pensar o estatal na América Latina, em diálogo com outras perspectivas latino-americanas que introduzem elementos válidos de reflexão política na discussão que acerca do Estado desenvolve a perspectiva relacional. Em um último momento, iremos discutir o potencial analítico das arcabouço teórico-conceitual apresentado para a compreensão do político na América Latina.
2. O ESTUDO DO ESTADO SOB UMA PERSPECTIVA RELACIONAL E SUA RELAçãO COM A DEMOCRACIA BURGUESA
Determinado conceito de Estado pode sugerir diferentes características e objetivos da atuação dos seus aparelhos. Além disso, a noção de Estado pode representar, também, uma alusão e uma ilusão da realidade1 de uma formação social e de seu regime de governo (por exemplo, o regime democrático). Esse conceito também traz consigo pista sobre as características fundamentais deste Estado e, por consequência, aponta para algumas tendências para seu estudo e serve com ponto de partida para o aprofundamento teórico. É o caso do Estado capitalista e das instituições democráticas, que pela correlação de forças presentes na formação social capitalista, condensa estas relações e as apresenta na forma democrática burguesa – a forma mais comum de regime para o Estado capitalista, mas não a única ou sua principal -, portanto, dentro dos limites estabelecidos pela relação entre capital e trabalho.
São diversas as maneiras de interpretar o Estado e sua conceitualização pode trazer uma indicação do posicionamento político-ideológico de quem a formula ou a usa. Trata-se, portanto, de um conceito polissêmico e, acerca disso, Mann acrescente que:
El Estado es sin duda un concepto confuso. El principal problema es que la mayoría de las definiciones contienen dos niveles diferentes de análisis, el «funcional» y el «institucional». Esto es, el Estado puede ser definido en términos de lo que parece, institucionalmente, o de lo que hace, sus funciones2
Segundo o autor, o que predomina na ciência política é uma perspectiva institucional de influência weberiana3. Tal concepção de Estado, enquanto um poder essencialmente político de dominação, limitado a um determinado território, pode ser encontrado a partir de diversos autores4. Contudo, o elemento que aproxima essas duas formas de pensar o Estado é a ênfase que seus adeptos dão à dimensão do aparato estatal, desconsiderando qualquer aspecto que vincule o Estado a um processo conflitivo e contraditório entre as classes fundamentais e suas frações.
Os desdobramentos dessas análises, por vezes apontam para os limites dos mecanismos de controle e regulatório das instituições5. Apontam também, em maior ou menor medida, para o papel da participação popular nos processos de renovação dos que ocupam cargos no executivo e legislativo. Assim, os procedimentos, tais como formas de composição dos cargos estatais por intermédio do sufrágio, a regulagem dos sistemas administrativos, jurídicos, burocráticos e coercitivos permanentes, como afirma Stepan, não apenas estruturam relações entre sociedade civil e a autoridade pública, como também estruturam muitas relações fundamentais da sociedade civil6.
Na tentativa de enriquecer essa discussão, propomos uma abordagem relacional do conceito de Estado. Trata-se da abordagem inaugurada por Nicos Poulantzas (1936-1979) que define o Estado como “condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classes”7, e que posteriomente foi desenvolvida por Robert Jessop (1946), que com um enfoque mais específico, sistematizou as contribuições de Poulantzas em uma abordagem estratégico-relacional do Estado. O Estado como uma relação social permite identificar a luta política através das noções de bloco no poder e suas frações. Para Poulantzas, as classes dominantes não constituem um bloco homogêneo, mas pelo contrário, se viabilizam através de interesses comuns entre frações em determinada conjuntura. Essa variação faz com que o Estado capitalista mantenha relativa autonomia com relação aos interesses das classes socais8.
Essa perspectiva teórica vai de encontro com outras perspectivas que interpretam o Estado como um recurso de poder inerte e amorfo que pode ser possuído por determinado grupo que lhe confere integralmente sua identidade. Contrapõem-se ainda, aquelas que acreditam que o Estado é independente da trama de relações sociais, um ente com vida própria que paira acima da sociedade. Ao contrário, o Estado relacional é a condensação das relações de poder que compõem o processo histórico em curso9. Portanto, o Estado é entendido em sua materialidade histórica, e com isso a sua forma socialmente contextualizada é levada em conta, ao passo que este só existe em razão das circunstâncias mutáveis que lhe estruturam. Torna-se necessário, nesse sentido, entendê-lo como um processo dinâmico, assim, tal qual a economia, a política ou a cultura, que não existem fora de sua relação social10. Jessop considera que o Estado é um conjunto de relações de poder, organizações e práticas sociais que são materializadas e condensadas precisamente por intermédio do conjunto de instituições e centros de poder que o constituem11. Dessa forma, o Estado passa a ser compreendido como uma condensação de relações, o que lhe confere uma autonomia relativa. Enquanto espaço de disputa entre diversos grupos sociais tende a responder aos interesses daquele, ou daqueles, grupos capazes de se impor sobre os demais.
Essa proposta se contrapõe a outra baseada na análise do Estado a partir das suas instituições como representantes do “todo estatal”. Isso porque negar a hipótese de que o Estado parte das relações sociais de dominação (poder), e que suas instituições tendem à reprodução destas relações, impossibilita um debate integral acerca do papel do Estado na sociedade capitalista. Além disso, essa negação contribui para uma visão equivocada sobre a função das instituições nessa realidade, e por consequência, também, acerca dos papéis dessas instituições no regime democrático. Ainda que partindo de um enfoque que articula outras influências teóricas, O’Donnell12 destaca que ao confundir o Estado com o aparato estatal ou com suas instituições, a relação entre as classes fundamentais13 aparece com meramente “econômica”, imputando uma característica que não é do Estado: a de intervir “desde fora” nas relações sociais. Na visão marxista, esta alusão ao Estado como “interventor externo” é entendida através do efeito de isolamento, propiciado, especialmente pelo Direito burguês14.Com isso retira-se do Estado a condição de garantidor dessa relação, de ator que cria, implementa e executa as políticas do Estado em favor da classe ou fração hegemônica. Ou seja, a expressão do Estado não possui uma forma única, ou cumpre sempre a mesma função. Ele combina e estabiliza em seu interior interesses de grupos que disputam e exploram as potencialidades estruturais do Estado para fazerem valer seus interesses. Acerca da realidade da América Latina, Florestan Fernandes identificava como o resultado das relações sociais se manifestavam e marcavam o desenvolvimento social. Segundo ele,
a articulação de formas de produção heterogêneas e anacrônicas entre si preenche a função de calibrar o emprego dos fatores econômicos segundo uma linha de rendimento máximo, explorando-se em limites extremos o único fator constantemente abundante, que é o trabalho – em bases anticapitalistas, semicapitalistas ou capitalistas. Por isso, estruturas econômicas em diferentes estágios de desenvolvimento não só podem ser combinadas organicamente e articuladas no sistema econômico global. [...] Sob o capitalismo dependente, a persistência de formas econômicas arcaicas não é uma função secundária e suplementar. A exploração dessas formas, e sua combinação com outras, mais ou menos modernas e até ultramodernas, fazem parte do “cálculo capitalista”15
Conforme a citação acima, a compreensão das combinações de formas econômicas arcaicas e modernas, dentro de um mesmo Estado implica levar em conta as relações sociais condensadas no Estado, que em nenhum de seus aspectos pode ser entendido como neutro. Portanto, a condição de dependência dos Estados dependentes latino-americanos, mas não apenas destes, pode ser mais bem compreendida, caso se leve em consideração a luta de classes e a autonomia relativa que o Estado alcança, por intermédio a hegemonia alcançada por uma determinada classe, ou fração de classe16.
Expressões econômicas arcaicas e modernas, como visto acima, não são autoexcludentes. Ambas podem se combinar de maneiras distintas em um mesmo sistema econômico. Dependendo das circunstâncias da luta de classe, o mesmo se aplica a modalidades democráticas e autoritárias, estas também podem ser combinadas em um mesmo regime político. Por certo, a democracia é a forma política mais comum que o Estado capitalista se apresenta na América Latina. Em grande medida, trata-se de uma interpretação da democracia “domesticada”17 que enfatiza os procedimentos responsáveis pela escolha de uma minoria dirigente e que está completamente distante da ideia de soberania popular18. Ou seja, é a preponderância da noção de que a “democracia é um método para promover o bem comum através da tomada de decisões pelo próprio povo, com a intermediação de seus representantes”19.
Em contraste com a noção de um Estado democrático neutro e voltado ao “bem comum” o campo da teoria marxista política contemporânea, a democracia, em sua acepção substantiva, seria o “governo pelo povo ou pelo poder do povo”, que possibilita a “reversão do governo de classe, em que o demos, o homem comum, desafia a dominação dos ricos”20. A implementação dessa forma de democracia se torna inviável em razão de que “os imperativos dos lucros e da acumulação” exigem a transformação de tudo, inclusive da força de trabalho, em mercadoria, o que representa uma margem excessivamente estreita para a soberania popular21. Ou ainda, estabelece-se uma ruptura epistemológica efetuada no interior da ciência política com relação a luta de classes. Nesse sentido, a definição de democracia que predomina “teve como principal resultado a dissolução do poder popular”, isso em razão de que o “‘demos’ perdeu sua identidade como uma classe social”, e passa a ser reduzido a um significado político. Portanto, “o povo passou a ser um grupo de indivíduos com uma identidade política divorciada das condições sociais, especialmente com respeito a sua classe social”22. Em consonância com esta abordagem, Gramsci, conforme retratado na citação que segue, percebe a democracia enquanto expressão de legitimidade de dominação do capitalismo:
Entre tantos significados de democracia, el más realista y concreto me parece que se puede extraer en conexión con el concepto de hegemonía. En el sistema hegemónico, existe democracia entre el grupo dirigente y los grupos dirigidos, en la medida en que (el desarrollo de la economía y por lo tanto) la legislación (que expresa tal desarrollo) favorece el paso (molecular) de los grupos dirigidos al grupo dirigente23.
O fenômeno social da dominação de classe é fundamental para a teoria de Estado relacional, que traz consigo a possibilidade de contribuir em diversos campos de estudos das ciências sociais. Não obstante seu valor explicativo, apresenta fundamentos teóricos explicativos da organização da sociedade, calcados na ideia ocidental de sistema democrático que se subscreve dentro dos limites teóricos do Estado.
3. A CONDENSAçãO DAS RELAçõES DE CLASSE EM UMA FORMAçãO SOCIAL ABIGARRADA
A abordagem relacional do Estado, diferente de outras interpretações marxistas, entende que essa forma política não deriva diretamente do modo de produção, pois isso levaria a crer que o Estado estaria fechado em si mesmo e representaria um reducionismo analítico. Na leitura poulantziana, por exemplo, o político pode ser sobredetermiando pelo econômico, mas não há uma determinação sobe nenhuma das instancias da formaçãço social. O político é uma derivação do econômico e a causa para isso decorre “de um encontro histórico de relações, explorações, dominações, demandas, expectativas, instituições, poderes, costumes, valores e ideologias” 24. Porém, é importante ter em mente que “el Estado refleja en su estructura organizativa concreta relaciones de fuerzas sociales, pero simultáneamente también las moldea y estabiliza”25.
Nessa linha de pensamento, o Estado é a consolidação temporal resultante dessas relações, é um signo constitutivo que determina e identifica um modo de vida coletivo. A sociedade capitalista é uma das formas políticas que pode assumir a vida social, e a democracia, por sua vez, é uma das formas de regimes possíveis26 ao Estado capitalista27. No ocidente, e especialmente na América Latina, o Estado capitalista é a forma predominante sobre as formas primordiais28. Dessa maneira, o Estado é a forma pela qual o capitalismo ordena a vida social e também é, em razão disso, a consolidação da dimensão do ordenamento normativo simbólico da sociedade dividida29.
Nesse sentido, o ordenamento da vida social pelo Estado se dá a partir de um conjunto de relações sociais, convertidas em instituições e caracterizado, como consequência, pelo monopólio da vida política30. Esse monopólio implica um processo de dominação política e sobreposição de cosmovisões. Esta sobreposição representa um obstáculo para a construção de espaços de participação direta e popular, justamente em razão de que o sistema político não se constitui alheio a luta de classe31. E por tal razão,
não existe capitalismo governado pelo poder popular, não há capitalismo em que a vontade do povo tenha precedência sobre os imperativos do lucro e da acumulação, não há capitalismo em que as exigências de maximização dos lucros não definam as condições mais básicas de vida [...] o capitalismo coloca necessariamente mais e mais esferas da vida fora do alcance da responsabilidade democrática32.
Neste sentido, a dinâmica do Estado capitalista só se realiza a partir da supressão de formas comunitárias de organização social prévias. Como resultado ocorrem as condições de “abigarramiento”33 presentes na maior parte dos países na América Latina. Sendo o Estado derivado de um processo de dominação, supõe-se a necessidade de disputas – retidas ou manifestas – entre dominantes e dominados nesse território34.
A dominação é possibilitada pelo acesso a alguns recursos básicos como o controle dos meios de coerção física, o controle dos recursos econômicos, o controle sobre os meios de informação em sentido amplo e o controle ideológico35. Como são limitados e objeto de disputa na sociedade dividida, apenas alguns obtém o acesso aos recursos fundamentais da dominação. O principal diferencial que determina o acesso a estes recursos na sociedade capitalista é a posição de classe, que determina o nível de acumulação de capital por parte de cada grupo social. A acumulação do capital é que possibilita certa distinção social, maior acesso a informação e a possibilidade de ser ouvido e influir política e ideologicamente na esfera do Estado e da Política. Em outras palavras, o Estado repercute as tensões entre grupos sociais de tal modo a ser seletivo em suas políticas, apresentando predisposições a defender, por intermédio de suas diferentes estruturas, os interesses dos grupos preponderantes. Esse tratamento diferenciado e parcial que constitui o Estado é o que Jessop define como uma “seletividade estratégica”. Entretanto, insiste o autor que,
el Estado no es un ente de voluntad que puede operar al margen de su contexto y de sus posibilidades. Tiene la autonomía que le marcan las luchas sociales. La autonomía de trabajar para aquellos que consigan hacerse hegemónicos en una sociedad 36
Assim, tal predisposição, presente no Estado, não permite prever, de antemão, o comportamento do Estado sem levar em conta o conjunto de relações sociais em questão. É isso permite à classe dominante impor, no controle do aparato estatal, determinados parâmetros para constituição e manutenção relação que melhor sintetiza o modo de produção, representada principalmente pela relação entre o capitalista e o trabalhador assalariado.
4. O PRINCíPIO DA IGUALDADE E A HETEROGENEIDADE DO ALCANCE ESTATAL
Em a “Ideologia Alemã”, Marx e Engels escreveram a conhecida, e por vezes mal entendida, frase “as ideias das classes dominantes são as ideias dominantes de cada época, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força espiritual dominante” 37. A partir disso é possível refletir que através da posição privilegiada em relação ao aparato estatal é que uma classe, na condição de dominante, constrói valores e procedimentos aceitos como válidos e naturais em determinada sociedade. É o caso, por exemplo, do estabelecimento do princípio da igualdade como um dos fundamentos distintivos do Estado moderno38. Esse princípio é aceito como descritivo da realidade social a priori, independente da sua validade ou não no plano empírico.
Ao condensar, moldar e estabilizar determinadas relações sociais decorrentes da luta de classe o Estado contribui com a consolidação de um novo tipo de dominação que se caracteriza pela adesão voluntaria do dominado. O verniz de igualdade, presente na forma política da democracia, oculta as relações desiguais, entre os proprietários dos meios de produção e aqueles que para sobreviver dependem de vender sua força de trabalho por um preço que não lhe compete escolher. A garantia legal que iguala todos os homens permite encobrir a desigualdade material existente na relação entre o proprietário dos meios de produção e o trabalhador39. Essa relação fundamental de dominação é respaldada no plano legal pelo princípio da igualdade, que se efetiva e ganha e eficácia pela vigência da lei em todo o território estatal. Esse respaldo é necessário para a dominação de classe e pressupõe, necessariamente a presença funcional do Estado. Sem este, impondo nos marcos constitucionais, a garantia da propriedade, por meio da lei e da força coercitiva, não haveria possibilidade de exploração da força de trabalho nos moldes da sociedade de capitalista40.
Assim, um dos principais elementos constitutivos da matriz institucional do Estado -derivado do conceito jurídico-político do Estado capitalista- é a vigência da lei [rule of law]41 e seu alcance em todo o território estatal. Isso é o que torna efetiva a vigência do princípio da igualdade no plano teórico e constitui as relações sociais de dominação do capital sobre trabalho42. Contudo, a força destes elementos constitutivos do Estado é variável, o que por sua vez produz diferentes níveis de dominação. Sob o requisito da presença territorial verificamos que os Estados na América Latina43apresentam uma condição especial que diferencia os países da região em diferentes graus de dependência econômica e de consolidação da democracia44. Se faz presente também uma condição de sobreposição incompleta de culturas e de formas de organizações políticas, nesse sentido que se faz a opção por uma perspectiva teórica que entende o Estado como condensação de relações sociais permite considerar as relações de poder.
Se um determinado Estado se apresenta, inicialmente, como o ente que exerce o monopólio da violência em determinado território pela vigência da lei, e não há o exercício dessas funções de Estado em todo território –ou seja, não ocorre o alcance funcional e territorial–, a análise do fenômeno fica prejudicada se partimos de uma visão formalista comparativa. Como consequência, uma visão formalista do fenômeno identificaria “disfunções” institucionais justificadas na ausência territorial do Estado. O que propomos é não disfunções que caracterizam o fenômeno, mas sim, a especificidade de cada formação social que pode explicá-lo. É o conceito de Estado, portanto, entendido na realidade concreta que pode explicar a pouca adesão institucional do Estado.
O processo ainda em andamento de consolidação da democracia na América Latina revela uma série de questões típicas que pedem respostas alternativas. A presença funcional e territorial do Estado sob a ótica da vigência da lei e do funcionamento de seus aparelhos pode ser interpretada a partir do processo de consolidação da democracia associada ao desenvolvimento do capitalismo. Aqui, sua forma é interpretada nos termos usados por Jessop de uma seletividade tecnológica e diz respeito a forma de operar do Estado. Tal seletividade se apresenta como uma estratégia de acomodar, circunstancialmente, os interesses divergentes condensados no espaço do Estado.
A dimensão acerca do problema da heterogeneidade do Estado latino-americano é enriquecida também pela noção, já referida, de abigarramiento. O referido termo, cunhado por Zavaleta Mercado45, denomina uma condição da formação do Estado capitalista, e explica em parte os motivos da heterogeneidade da atuação do Estado na região. Vale lembrar que a teoria que o sociólogo boliviano desenvolve não só busca trabalhar as condições da dominação capitalista –o que Marx chama de “formações aparentes”-, mas também as condições de dominação colonial sobre a diversidade de culturas, tempos históricos e civilizações na América Latina no século XX46. Para explicar essas condições históricas é que Zavaleta Mercado propõe a noção de “lo abigarrado”, conceito que, para o objetivo deste trabalho, pode ser definido como um processo de formação social hegemônica que se impõe sobre diversas outras culturas, cosmovisões e organizações políticas prévias ao sistema capitalista. Essa noção pressupõe, que o Estado é o resultado de um processo de criação e estabelecimento de uma forma de vida hegemônica, com capacidade de reproduzir-se para outras regiões. Essa gênese da dominação possibilita a produção e a reprodução das formas de dominação particulares da sociedade capitalista. Resulta, no caso do Estado na América Latina, em um processo de formação hegemônica incompleta, em razão de que a sociedade capitalista nasce a partir de uma transposição do modelo europeu através do colonialismo. Ou, nos termos de Jessop, trata-se da condição que determinados grupos sociais hegemônicos tiveram de se valer das diferentes estruturas do Estado para defender seus interesses que coincidiam com, o que Florestan Fernandes47chamou de “capitalismo dependente”.
Como resultado das diferentes formas das relações serem condensadas no interior dos Estados latino-americanos é possível verificar que, em grande parte destes países, a ordem constitutiva das relações de dominação não abrange de igual forma todas as regiões, permitindo a existência de organizações políticas, formas de autogoverno e culturas que são independentes da atuação do Estado nacional. Na maior parte do continente o que há são países multisocietários, caracterizados pela sobreposição incompleta de sociedades, que ainda funcionam sob a vigência do colonialismo interno. Dessa forma, os Estados só correspondem aos espaços mais modernos e centrais dos países da região. Isso não significa dizer que a dominação por meio do Estado desaparece, mas que se dá por outras formas. Diante da incapacidade estatal de impor a lei e a burocracia em todo o território ressurgem diversas expressões de organização da luta política48. Na prática, uma das expressões desse fenômeno é a criação de distribuição do poder regional e maior fragmentação territorial do Estado nacional. Diante da insuficiente presença do aparato estatal as dinâmicas das políticas regionais aparecem com única opção para a população. Como resultado, surgem tanto relações políticas de dominação que reproduzam as relações macro estatais, quanto formas de organização políticas autônomas e descentralizadoras de poder.
O caso em que a ausência do Estado gera formas autônomas e mais descentralizadoras do monopólio da vida política, há por exemplo, organizações indígenas autogestionadas e apartadas do Estado - com são os Zapatistas, ao Sul de Chiapas, no México - que se organizam politicamente através de um sistema de conselhos participativos e de semi-representatividade alternada de suas lideranças e porta-vozes. O caso dos Zapatistas no México, são o resultado da emergência do que Tapia49 denomina de “subsolo político”. Este subsolo político, conforme o autor, são um conjunto de espaços que persistem à sobreposição da forma de vida política hegemônica –o Estado-nação– e à colonização. Formam um corpo composto por diferentes formas de vida política, estruturas de governo e autoridade alheia à forma de Estado moderna. Como resultado da articulação e mobilização desse subsolo em tempos de crise, frequentemente, estes espaços sobrepõe ao Estado e até mesmo suspende sua validade temporariamente50.
Como resultado à ausência funcional e territorial do Estado, tem-se um Estado fraco, com grandes “zonas marrón”, que mescla funcional e territorialmente, características democráticas e autoritárias, onde os componentes de legalidade democrática “se esfuman en las fronteras de diversas regiones y relaciones de clase, étnicas y sexuales”51. A democratização do Estado52, neste sentido, pode ser a forma mais evidente da luta de classes: por um lado, a classe dominante tenta institucionalizar a democracia e legitimá-la com processo eleitoral. Enquanto, por outro lado, as classes subalternas atuam desde a margem do Estado para diminuir o monopólio da política por parte do Estado. De qualquer forma, interesses tanto e classe, quanto étnicas e sexuais são “aspectos clave de las selectividades estratégicas de los modos de regulación, de la divisón social del bienestar y de la matriz institucional del Estado”53.
Diante da heterogeneidade estatal e do problema do alcance territorial de suas funções, a análise do Estado como relação social abre diversos flancos de interesse. Um deles é a função do Estado através de suas instituições na relação de classe, onde a mescla desses atributos específicos do Estado heterogêneo ganham, como veremos na próxima seção, relevância especial.
5. A DOMINAçãO POR MEIO DA SELETIVIDADE ESTRATéGICA DO ESTADO: POSSIBILIDADE DE INTERPRETAçãO
Conforme tratado anteriormente, o estudo do Estado é, frequentemente, associado à análise das instituições políticas. Ainda que essas sejam partes fundamentais para a existência do Estado moderno, não representam a totalidade dessa forma política. É a partir das instituições, contudo, que melhor se verifica a atuação do Estado frente à sociedade em termos de políticas públicas. Quando se trata da análise do desempenho do sistema democrático no mundo, as instituições são em grande parte o meio mais comum para a análise. Também, por meio da observação da composição das instituições e de uma abordagem estratégico-relacional podemos, em grande parte, idenficar um momento específico da condensação das relações materias. Um das formas de identificar o momento da condensação dessas relações materias é a abordagem relacional-estratégica sobre as políticas de Estado. Essa abordagem permite -através de uma aproximação multifatorial e que leva em conta dimensões semi-óticas como parte das mudanças institucionais- afirmar que todo proceso de transformação politica há intereação entre fatores econômicos, políticos, e culturais que interagem através de “três mecanismos evolutivos”: i) variação, que diz respeito à emergência de novas práticas e sentidos; ii) seleção, ou seja, a prioridade institucional a certas práticas e sentidos; e iii) retenção, que se expressa pela intitucionalização de certas práticas incorporadas à políticas públicas54.
Isso se aplica a democracia, que necessita ser interpretada enquanto uma forma política relacional e determinada conjunturalmente. O conceito de democracia enquanto valor universal55 ganha um caráter normativo e nada explicativo do sistema político e pode ser interpretado enquanto uma seletividade estratégica, que redunda em uma forma de dominação. Nestes termos, seria possível afirmar que a ideia de democracia, justamente por ser amplamente aceita pelo mundo, como uma ideia dominante. E se assim for, vale lembrar o que Marx e Engels dizem em “A Ideologia Alemã” sobre as ideias dominantes. Dizem eles que estas não são nada mais do que “a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que faze de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação”56. A forma de democracia hegemônica, no sentido gramsciano, aquela que se espalhou pelo mundo, e por vezes é usada como sinônimo de civilidade, é a atual expressão da regulação política do Estado capitalista. Se em certos países -como nos Estados Unidos, França, Inglaterra, dentre outros- o desenvolvimento do capitalismo coincide com o estabelecimento da democracia (e, portanto os valores democráticos são congruentes e a crença na democracia é sólida), em outros países, como os latino-americanos, não ocorre o mesmo.
Nos países latino-americanos a democracia ainda produz posicionamentos contraditórios, os quais conciliam um forte autoritarismo com a valorização de certas garantias democráticas conforme mostram pesquisas de opinião pública, tais como o Latino-barômetro57. Uma forma de explicar essa situação é justamente pelo fato de que “aqui o surgimento do capitalismo se deu sem que existisse uma base social, política, econômica ou ideológica de cunho liberal”58. Ao levarmos em consideração que a expectativa de alcançar condições dignas de vida é confrontada com uma realidade marcada por uma profunda desigualdade social, e nesse sentido “não é sem fundamento, portanto, o questionamento das bases de legitimação da democracia em seu modelo liberal entre nós”59.
Esse conceito liberal de Estado que garante a igualdade política e jurídica, enquanto formas de dominação simbólica, pressupõe a separação entre as esferas política e econômica, a separação do indivíduo do seu núcleo coletivo ou de classe, e as relações sociais como relações contratuais. Nessa linha de pensamento, o aspecto coativo do Estado frente a uma classe passa despercebido, dissimulado. Como as relações sociais fundamentais parecem estar “separadas” do Estado torna-se difícil reconhecer a natureza primordialmente coativa da ação estatal. A partir dessa aparência, o Estado passa a ser reconhecido apenas como um momento de objetivação da relação de social, representado pela intervenção esporádica, alheia, e externa à relação de dominação. Como consequência, segundo o autor, “lo que es primordialmente un aspecto de relaciones de dominación queda reducido a su superficie objetivada en instituciones”60. É a partir dessa apresentação da atuação estatal que o Estado é identificado com as instituições e que essas atuam frente às relações sociais.
Como vimos anteriormente, o Estado na sua dimensão relacional é uma condensação de relações materiais que pode ser observado concretamente em uma formação social determinada. Em sua dinâmica, portanto, não atua de forma neutra. Mas pelo contrário, atua através de uma seletividade estratégica em suas ações que corresponde ao resultado da condensação dessas forças.
Em razão disso, por meio da seletividade estratégica do Estado, encarnada nas formas de violência política, cultural, e ideológica é operacionalizada, inicialmente, a partir da garantia de vigência de determinadas leis e normas, resultados da produção normativa de uma fração e/ou classe dominante. É neste sentido que uma das subdimensões da análise relacional do Estado é noção de seletividade estratégica, desenvolvida por Jessop que possibilita identificarmos a possibilidade do Estado atuar como parte interessada e garantidor das relações de dominação/poder. A importância da propriedade para existência do Estado é trazida, desde as teorias contratualistas como central para a passagem do “estado de natureza” para a sociedade civil61. A ligação entre as diferentes formas que a teoria liberal enfatiza a relação entre sociedade e Estado se dá pela importância que a garantia da propriedade possui. A propriedade, que interessa aqui é aquela dos meios de produção.
A partir da proteção sobre a propriedade dos meios de produção ao capitalista se verifica o respaldo estatal a relação entre capitalista e trabalhador assalariado, isso ocorre com relação a ambas classes fundamentais62. Essa garantia se dá a partir da vigência da lei como parte constitutiva de uma relação desigual, o que, por sua vez, reproduz e amplia a desigualdade dessa relação. Com isso, destaca o autor, não apenas o capitalista tem garantida sua posição de classe, mas também ao trabalhador é assegurado sua permanência na posição de classe subalterna através do fato de que pode vender sua força de trabalho “livremente”. Ao capitalista é garantido a proteção à propriedade privada, e ao trabalhador, é assegurado sua liberdade contratual para o trabalho. Cabe observar que liberdade e propriedade são elementos fundantes do capitalismo. Marx, ao tratar das condições objetivas que permitiram a transformação de dinheiro em capital, diz que:
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho63.
Como resultado do desempenho do Estado frente à sociedade (garantidor da relação) é que se esboçam as estratégias institucionais para as políticas de Estado64. No Estado capitalista, na formulação de Lechner65, o desenvolvimento econômico e a administração das desigualdades sociais são os principais problemas a serem endereçados. A partir da atuação como garantidor da relação de dominação de classe -justificada em sua própria natureza constitutiva- a função do Estado passa a ser de conformação de estratégias para a ampliação do modo de produção. O autor destaca duas estratégias principais que o Estado latino-americano assume na sua expressão da modernização capitalista: a do Autoritarismo Tecnocrático e a da Social Democracia66.
Na primeira forma mencionada, o Estado avoca para si a incapacidade de compensar os custos sociais do capitalismo e de promover o desenvolvimento econômico. Há um esvaziamento da política estatal e a substituição do debate público pelo discurso e a ação do especialista para a solução de problemas sociais. Nesse sentido, a abordagem estratégico relacional do Estado identifica tanto as seletividades discursivas quanto as seletividades tecnológicas são muito importantes para implementação do modelo. A função das seletividades discursivas (do discurso tecnocrático, nesse caso) são de estabelecer coesão e projeção da ação política para o futuro; já as seletividades tecnológicas (o management com tecnologia de governo, nesse caso) definem os modos de operar do Estado67. O que chama a atenção dessa estratégia é a aplicação da força normativa do fático para despolitizar a sociedade e dessocializar a política68. Isso se dá através da prática dos discursos sobre fatos sociais, na medida em que sua estratégia aponta para a solução de problemas sociais através da imposição do discurso da racionalidade técnica do agir estatal69. Já na segunda estratégia, a da Social Democracia, o Estado assume a tarefa do desenvolvimento econômico e age como “mediador” entre o capital nacional e o transnacional. As administrações das desigualdades sociais aqui são entendidas como tarefa do Estado e a estratégia implementada é a maior democratização: as instituições devem, nesse sentido, “homogeneizar y traducir las dispersas demandas populares en reivindicaciones compatibles con el modelo de desarrollo”70
As instituições são chave para ambas as estratégias apresentadas. Na estratégia autoritária, devem ser “esvaziadas” em seu conteúdo político e tomadas pelo discurso autoritário tecnocrático. Já na opção democrática, são o meio de homogeneização parcial das demandas sociais. Nesse caso, a democratização do Estado age como propulsor da dissolução do conteúdo classista e relacional oriundos das contradições do modelo econômico e as transforma em demandas fragmentadas desconectadas da relação fundamental – é o caso das demandas em favor da de maior distribuição da renda, melhores condições de trabalho, ampliação dos direitos políticos, e assim por diante.
Quando entendemos que a atuação do Estado tem como objetivo último a reprodução do sistema capitalista71, é natural entendermos as instituições que o compõem como igualmente mantenedoras e administradoras das relações entre as classes fundamentais. Daí se extrai a qualidade do Estado como garante das relações sociais e das suas instituições como modo operativo desse respaldo.
As instituições podem atuar, neste sentido, como o terceiro elemento necessário na relação de classe, uma vez que implementam e reproduzem essas relações através da reapresentação e da implementação de políticas em favor dos interesses da classe ou fração de classe hegemônica por meio das seletividades estratégicas do Estado.
6. CONSIDERAçõES FINAIS
Por meio do presente artigo, buscamos explorar o potencial analítico da abordagem relacional para discutir o Estado nas formações sociais latino-americanos. Para tanto, foram apresentadas algumas características presentes na gênese destas formações, marcadas especialmente por um desenvolvimento capitalista dependente e uma combinação entre a formalização de uma estrutura democrática e um inconclusa consolidação de valores e instituições democráticos.
Ao longo do artigo, e fazendo uso do referencial teórico proposto de cunho crítico, apresentamos o Estado não apenas enquanto a condensação específica de relações materiais, mas também como capaz de modelar e estabilizar relações sociais. A sua interpretação a partir de uma abordagem relacional, diferentemente do que outras perspectivas tradicionais poderiam oferecer, permitiu trazer uma discussão de seu papel de condensação de forças sociais, e sua previsível tendência de responder aos interesses do(s) grupo(s) que se fazem hegemônico(s) em seu interior.
Entendemos que na discussão feita em torno da abordagem relacional, em diálogo com outras perspectivas oriundas da própria região latino-americana, ficou cristalizada a contribuição deste trabalho no sentido de sistematizar uma série de formulações que permitissem compreender, do ponto de vista teórico, os Estados que resultam de sociedades como as latino-americanas, que combinam do ponto de vista econômico elementos arcaicos e modernos, e do ponto de vista político, formações democráticas e autoritárias. Essa complexidade, resultante da luta de classes, repercute no Estado e pode ser compreendido por intermédio de alguns conceitos-chave discutidos neste trabalho, como os de autonomia relativa e seletividade estratégica. Por fim, concluímos que essa forma diferenciada de se conceitualizar o Estado, que o entende como uma condensação da luta classe e dotado de certa autonomia, comporta valiosos ganhos na análise de tal complexidade.
fn72Artículo de investigación. Recibido el 06-04-2019 y aceptado el 07-05-2019
TLA-MELAUA, Revista de Ciencias Sociales. Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Benemérita UniversidadAutónoma de Puebla, México / E-ISSN: 2594-0716 / Nueva Época, año 14, núm. 48, abril/septiembre 2020, pp. 7-27.
fn1Essa característica da concepção de ideologia foi apresentada por Althusser (1999).
fn4Cf. O’ Donnell, 1978, Hirschman, 1983, e Stepan, 1978.
fn8Poulantzas, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
fn9Jessop, Robert. State Power. Polity Press: Cambridge, 2007.
fn10Jessop, Robert. El Futuro del Estado Capitalista. Madrid: Catarata, 2008.
fn11Valenzuela Espinoza, Iván. El enfoque estratégico-relacional: implicancias para el estudio del Estado, las instituciones y el desarrollo en América Latina. Revista de Ciencias Sociales, Universidad de Chile, Santiago de Chile, 2014.
fn13Neste trabalho entendemos a categoria “classes fundamentais” com ênfase em três principais critérios de identificação destacados por Lênin (1977): o lugar que o indivíduo ocupa no modo de produção; a sua relação com os meios de produção; e o seu papel na organização social do trabalho (posição na distribuição social da riqueza). A partir desses critérios, no interesse deste estudo, propomos com a categoria mencionada a distinção entre o capitalista e o trabalhador assalariado.
fn15Fernandes, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 64-65.
fn16Esses elementos já eram ressaltados no estudo clássico de Gomariz Moraga (1977).
fn17Uma síntese das formas que a democracia assume na América Latina pode ser vista em: Miguel, Luis Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Revista Dados, v. 45, n. 3, p. 483-511, 2002.
fn18Miguel, Op. cit.
fn19Schumpeter, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p. 313.
fn21Wood, Op. cit.
fn23Gramsci, Antonio. Cuadernos de la Cárcel – Tomo 3. Cidade do México: Ediciones Era, 1999. P. 313.
fn25Hirsch, Joachim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, pp. 165-175, p, 170.
fn26A forma democrática é uma das possibilidades de regime para o Estado capitalista, mas não a única. Ver em Poulantzas, Nicos. Fascism and Dictatorship. London: New Left, 1974.
fn28Como elemento analítico, a “forma primordial”, segundo Zavaleta (1982; 1984), corresponde ao modo em que se relacionam o Estado e a sociedade civil em cada história nacional e suas mediações. Como ferramenta metodológica, permite, identificar o “momento constitutivo” de diferentes modos de organizações sociais e políticas na história latino-americana e suas formas pré-capitalistas. Ver, também, Oszlak (2007).
fn31Cf. Gramsci (1999), Poulantzas (2007) e Wood (2003).
fn33Faremos referência a essas condições de abigarramiento mais adiante, quando falaremos também da heterogeneidade e o problema do alcance do Estado na América Latina. De maneira prévia, podemos entender o termo como uma forma de descrever um aspecto da heterogeneidade do Estado latino-americano, qual seja o aspecto da formação estatal sobreposta sobre as comunidades anteriores ao colonialismo.
fn35No mesmo sentido, ver Tilly (1996).
fn36Jessop, Robert. El Futuro del Estado Capitalista. Madrid: Catarata, 2008.
fn40Engels, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
fn41Ver também em Poulantzas, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 4. Ed. Rio de Janeiro:Graal. 2000.
fn43Fato relacionado também ao Estados em construção e às democracias em formação na África e em parte da Ásia (Cf. O’DONNELL, 1978).
fn44Fernandes, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
fn47Fernandes, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
fn48A visão que adotamos neste ponto, é que a ineficácia do Estado e seu pouco alcance territorial tem a ver com a seletividade-estratégica desse Estado. Interpretações igualmente importantes podem explicar o fenômeno a partir da existência de uma crise hegemônica (Gramsci) ou do bloco no poder (Poulantzas), ou mesmo por um enfoque das capacidades estratégicas do Estado (O’Donnell).
fn50 É o que se verifica nos casos de insurgência na Bolívia, por exemplo, nos casos das Guerras Água (2000) e do Gás (2003).
fn52A democratização aqui é entendida nos termos de Tapia (2008), como graus de redução do monopólio da política organizada como Estado.
fn53Jessop, Robert. El Futuro del Estado Capitalista. Madrid: Catarata, 2008, p.4.
fn55Sobre a democracia enquanto um valor universal, ver Coutinho (1980).
fn57A base de dados do Latinobarômentro (www.latinobarometro.org) oferece uma percepção sobre as crenças, valores e confiança dos indivíduos com relação a democracia.
fn59Ibidem.
fn61Vale lembrar que tanto Hobbes, quanto Locke e Rousseau, cada um através de argumentações teóricas diversas, tratam dos níveis de legitimidade da propriedade.
fn66Em igual sentido, ver Emmerich (1995).
fn67Jessop, Robert. The Strategic Selectivity of the State: Reflections on a Theme of Poulantzas. 2014. Disponível em: https://bobjessop.wordpress.com/2014/06/16/the-strategic-selectivity-of-the-state-reflections-on-a-theme-of-poulantzas/. Acesso em: 7/07/19.
fn68Lechner, Op. cit, 1981.
fn69Outro exemplo, parte de uma seletividade discursiva do Estado, é a articulação de agências e estratégias transacionais, que devido a operação multiescalar do capitalismo fez possível o predomínio de órgãos multilaterais como o FMI e Banco Mundial (sobre estruturas nacionais). Ver outros exemplos em Jessop, Robert. The state: past, present, future. Cambridge: Polity Press. 2016.
fn70Ibid., p. 1084.
fn71Compartilham da ideia que o Estado tem por objetivo último a reprodução do modo de produção capitalista, autores como Gramsci (1999), Poulantzas (2007) e Miliband (1972). Ver, também, Carnoy (2013) e Thwaites Rey (2004).
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